Aspectos gerais do indiciamento
Antes da publicação da Lei nº 12.830/2013, o ordenamento jurídico brasileiro, a despeito de citar o indiciamento policial de forma esparsa em artigos do Código de Processo Penal (CPP), a exemplo do artigo 5º, parágrafo 1º, alínea b, artigo 6º, incisos V, VIII e IX, artigo 10º, caput e parágrafo 3º, artigo 15 e artigo 125, não conceituava ou definia os seus contornos.
Nesse contexto, não eram incomuns críticas ao instituto, afirmando-se, sobretudo, que seria desprovido de fundamentação jurídica, ante à inexistência de legislação que o resguardasse. Afirmava-se, inclusive, que a previsão esparsa do termo em artigos do CPP não suplantava a necessidade de uma regulamentação mais detalhada sobre o indiciamento em si (Chouke, Fauzi).
Ainda assim, outra parte da literatura defendia o instituto, conceituando-o como o ato formal em que o delegado de polícia, no decorrer de uma investigação criminal, por meio de uma análise técnico-jurídica, expõe o seu convencimento quanto à materialidade e indícios de autoria (Machado, Leonardo).
O Poder Judiciário também já o reconhecia antes da existência de legislação regulamentadora. O Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, não somente possuía julgados nos quais conceituava o indiciamento como ainda afirmava de forma peremptória a sua legitimidade (STJ – 5ª T. – HC 190507/SP – rel. min. Gilson Dipp – j. 20/11/2011 – DJU 04/11/2012).
Ao sedimentar as suas diretrizes, a publicação da Lei nº 12.830/2013 demonstrou a opção legislativa por aderir ao escólio defensor do indiciamento. Afinal, em essência, a legislação apenas reproduziu os contornos adotados pela literatura e jurisprudência mencionadas anteriormente.
Além de tratar sobre os aspectos gerais relacionados à investigação criminal, ao prever, por exemplo, que as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais possuem natureza jurídica, essenciais e exclusivas do Estado (artigo 2º, caput), a Lei nº 12.830/2013 conceituou o indiciamento como ato privativo do delegado, que se dará “por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias” (artigo 2º, § 6°).
A relevância do indiciamento não gira em torno da mera alteração do status de investigado para indiciado ou nas formalidades a ele inerentes, como a elaboração da folha de antecedentes criminais e do boletim de identificação criminal, que podem, por vezes, ocasionar alguma forma de constrangimento (Brasileiro, Renato). O seu verdadeiro valor se encontra nas garantias que lhe são inerentes.
Isso porque o indiciamento permite que o investigado esteja ciente do objeto de questionamento do interrogatório, o que propicia o pleno aproveitamento desse momento para se defender e esclarecer os fatos. Isso porque, para exercer o direito de defesa de forma plena, é estritamente necessário que se conheça quais são as imputações que estão sendo feitas (Saad, Marta).
À mingua do indiciamento, o Estado poderia formular questionamentos que se desviassem do ponto central apurado no inquérito, privando o investigado de informações essenciais para a sua defesa. Além de aprofundar o desequilíbrio na relação entre Estado-investigador e investigado, isso colidiria com o direito a não autoincriminação, na medida em que conhecer o entendimento da Polícia sobre a autoria e a materialidade é fundamental para que se evite autoincriminação inadvertida (Souza, Alberto).
O indiciamento também desempenha papel crucial na garantia de outros direitos do investigado, como o direito ao silêncio, acesso aos autos, representação por advogado e elaboração de razões escritas (Barbosa, Daniel). Um exemplo concreto desse impacto pode ser observado no artigo 14, CPP, que assegura ao indiciado a faculdade de requerer diligências para o esclarecimento dos fatos, incluindo a realização de perícias, o arrolamento de testemunhas e a juntada de documentos (Saad, Marta).
Além das consequências anteriormente destacadas, o indiciamento acarreta repercussões práticas significativas, vide o disposto no artigo 26, § 2º, Decreto-Lei nº 11.366/2023, recentemente publicado pela Presidência da República. Consoante esse dispositivo, efetuado indiciamento em casos envolvendo crimes dolosos, o proprietário da arma de fogo terá cassada a sua autorização para posse ou porte.
Essa disposição não apenas confirma a atualidade do instituto, com reflexos diretos na vida dos cidadãos, como demonstra que o Poder Executivo compartilha da mesma posição dos Poderes Judiciário e Legislativo em relação à sua validade e importância.
Enquanto os debates concernentes aos sujeitos passivos em geral caminham para uma relativa pacificação, com exceção de posições isoladas que ainda enxergam o indiciamento como um ato irrelevante e estigmatizador (Moreira, João.), o mesmo não se pode dizer quando o indiciado é detentor de foro por prerrogativa de função no STF.
Essa questão, alvo de relevante controvérsia nos dias atuais, é o ponto central do presente artigo, e será abordada de maneira mais aprofundada no próximo tópico. Para compreendermos plenamente os desafios e nuances envolvidos, é fundamental explorar as particularidades desse cenário.
Indiciamento de autoridades com foro por prerrogativa de função no STF
Qualquer pessoa pode ser indiciada à luz da atual legislação, exceto os membros do Ministério Público (artigo 41, II, Lei 8.625/93), a quem foi conferida a prerrogativa de não ser indiciado em inquérito policial. Nesse caso, deve a autoridade remeter os autos para o Procurador-Geral de Justiça, que possui a competência para dar prosseguimento à investigação.
Da mesma maneira, o artigo 33 da Lei Complementar nº 35/79 prevê que na existência de indícios da prática de crimes por Magistrados, “a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou órgão especial competente para o julgamento, a fim de que prossiga na investigação”.
No que diz respeito aos demais detentores de foro por prerrogativa de função, inclusive os que possuem foro na Corte Suprema, objeto deste estudo, inexistem disposições legais que impeçam o indiciamento (Souza, Alberto).
Em razão da omissão legislativa, sempre se entendeu que o delegado possuía o poder-dever de efetuar o indiciamento de parlamentares que possuam prerrogativa de foro no STF, sendo condicionada tão somente à autorização para a instauração e à supervisão do inquérito (Brasileiro, Renato).
Essa posição encontra respaldo no Poder Judiciário em decisão proferida pelo Plenário da Suprema Corte, no contexto da Petição nº 3825 QO/MT (relator: ministro Sepúlveda Pertence, 11/4/2007). In casu, ao se debruçar sobre a solicitação de anulação de indiciamento apresentada por um senador, o STF concluiu, em razão da inexistência dispositivo legal que proibisse o delegado de efetuar o indiciamento, que nada impediria a sua formalização.
Posteriormente, no entanto, surgiu uma controvérsia em razão do que foi decidido no Inquérito nº 2.411 QO, Relator(a): Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 10/10/2007, DJe-074 DIVULG 24-04-2008 PUBLIC 25-04-2008 EMENT VOL-02316-01 PP-00103 RTJ VOL-00204-02 PP-00632). Nele, a Suprema Corte anulou o ato formal de indiciamento realizado pela autoridade policial em relação a parlamentar sob investigação.
A partir desse episódio, uma parte da doutrina passou a sustentar que a compreensão sobre a possibilidade de se indiciar detentores de prerrogativa de foro na Corte Suprema sem autorização judicial estava ultrapassada. Argumenta-se que se “passou a entender que a autoridade policial não pode indiciar parlamentar sem prévia autorização do ministro-relator do inquérito” (Brasileiro, Renato), sob risco de nulidade.
Além desse precedente, que se tornou o principal argumento dos defensores da necessidade de autorização prévia para o indiciamento, essa corrente sustenta que o ato de indiciar seria inócuo, isto é, desprovido de quaisquer consequências processuais.
Quanto à suposta inutilidade do instituto, abstém-se de refutá-la neste momento, uma vez que isso já foi abordado de forma exaustiva no tópico 1. Na ocasião, comprovou-se não apenas as implicações processuais do indiciamento, relacionadas às garantias de defesa do investigado, mas também suas repercussões práticas, como evidenciado no artigo 26, § 2º, do Decreto-Lei nº 11.366/2023, que estabelece a cassação da autorização para porte ou posse de armas de fogo como uma das consequências do indiciamento.
Sendo assim, passa-se à análise detalhada do ponto fulcral defendido pelos que afirmam ser necessária a autorização judicial para o indiciamento: a decisão proferida no Inquérito nº 2.411.
Ao se examinar as bases que sustentaram tal julgado, fica evidente que a razão para a anulação não se encontra no indiciamento sem autorização em si, mas sim no fato de que o inquérito teve início sem a devida autorização e prosseguiu sem a supervisão judicial.
A simples leitura de trecho da sua ementa não deixa dúvidas sobre o que motivou a anulação:
“[…] Se a Constituição estabelece que os agentes públicos responde, por crime comum, perante o STF (CF, art. 102, I, b), não há razão constitucional plausível para que as atividades diretamente relacionadas à supervisão judicial (abertura de procedimento investigatório) sejam retiradas do controle judicial do STF. A iniciativa do procedimento investigatório deve ser confiada ao MPF contando com a supervisão do Ministro-Relator do STF.5. A Polícia Federal não está autorizada a abrir de ofício inquérito policial para apurar a conduta de parlamentares federais […] a atividade de supervisão judicial deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação. […] Questão de ordem resolvida no sentido de anular o ato formal de indiciamento promovido pela autoridade policial em face do parlamentar investigado”.
Esse ponto, inclusive, é esclarecido no Inquérito 4.621/DF (rel. min. Luís Roberto Barroso, j. 23/10/2018), em que o ministro Luís Roberto Barroso indefere um pedido de anulação de indiciamento apresentado por uma autoridade com prerrogativa de foro. Ele afirmou que, no caso em questão, como o “inquérito foi instaurado com autorização e tramitou, desde o início, sob supervisão de Ministro desta Corte, tendo o indiciamento ocorrido somente no relatório final do inquérito”, o referido ato é legítimo, sendo desnecessária qualquer autorização prévia.
Na oportunidade, o ministro enfatizou que “o indiciamento é ato privativo da autoridade policial e inerente à sua atuação, sendo vedada a interferência do Poder Judiciário”.
Ensinou, ainda, que “conferir o privilégio de não poder ser indiciado apenas a determinadas autoridades, sem razoável fundamento constitucional ou legal, configuraria uma violação aos princípios da igualdade e da república”.
Para além da minúcia relacionada à ratio decidendi, de fundamental importância para a compreensão do tema, há ainda o aspecto temporal. A decisão referente ao Inquérito nº 2.411 foi proferida antes da publicação da Lei 12.830/13, a qual não impôs quaisquer restrições no que concerne aos sujeitos passivos do indiciamento.
Essa omissão revela a intenção do legislador em aplicar o indiciamento a todos, inclusive aos detentores de foro por prerrogativa de função na Suprema Corte (Barbosa, Daniel).
Não bastasse a ausência de dispositivos legais, a restrição do indiciamento ora debatida contradiz a própria Constituição de 1988 (CF/88). Isso porque o dispositivo que fundamenta o foro privilegiado (artigo 102, inciso I, CF/88) apenas menciona as palavras “processar” e “julgar”.
Não há qualquer menção a “investigar”, termo que, caso estivesse presente, teria o condão de fortalecer a tese da necessidade de autorização para o indiciamento de autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função (Hoffman, Henrique).
A impossibilidade de formalização do indiciamento no caso em questão também conflita com a interpretação conforme da Constituição realizada na AP 937 QO, Relator(a): min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 03/05/2018, Acórdão Eletrônico DJe-265 Divulg 10/12/2018 Public 11/12/2018 , que restringiu a aplicação do foro por prerrogativa de função, sobretudo com o escopo de fortalecer o princípio da igualdade e os pilares republicanos.
Como bem estabelecido nesse julgado, o foro decorre de uma prerrogativa da função, e não de um privilégio de caráter pessoal do ocupante de cargo público. Se a intenção do STF foi limitar o instituto ao necessário para a proteção do interesse público inerente ao cargo ocupado, não há motivo para se criar mais uma distinção entre a sistemática aplicada aos detentores da prerrogativa e aquela incidente sobre os cidadãos comuns.
Repúdio à seletividade
Nessa perspectiva, a necessidade de autorização prévia para formalizar o indiciamento dos detentores de foro por prerrogativa de função pelo delegado de polícia, em inquéritos devidamente autorizados e supervisionados, iria de encontro ao repúdio à seletividade do sistema penal brasileiro.
A posição defendida neste trabalho encontra guarida também no âmbito normativo do próprio STF. Os parágrafos 2°, 3° e 5° do artigo 231, RISTF, fazem referência explícita à condição da pessoa indiciada em inquéritos que tramitam na Corte Suprema, ao abordar os procedimentos a serem realizados após a apresentação da peça informativa, ou seja, o relatório final elaborado pela autoridade policial.
As disposições normativas regimentais do Supremo, em conjunto com a ausência de qualquer disposição que afirme a necessidade de autorização para indiciamento, demonstra que se trata de um passo legítimo no processo investigativo, consolidando a sua aplicabilidade diante de autoridades com prerrogativa de foro.
Diante desse cenário, conclui-se que o indiciamento de detentores de foro por prerrogativa de função, quando realizado no bojo de inquérito devidamente autorizado e supervisionado, está alinhado com os ditames legais, constitucionais e regimentais, sendo considerado um passo legítimo da persecução penal.
Referências
GUIMARÃES, Johnny Wilson Batista. Análise garantista do indiciamento no inquérito policial. Revista Navigandi. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19166. Acesso em, v. 27, 2017.
SAAD, Marta. Defesa no inquérito policial. Revista de Direito de Polícia Judiciária, v. 2, n. 4, p. 59-83, 2018.
SOUZA, ALBERTO VITOR BEZERRA ARAÚJO. CAPÍTULO 5 INDICIAMENTO. Investigação Criminal Preliminar: estado atual e tendências: Estudos em Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, p. 71, 2018.
(Processo Penal contra Autoridades, Rio de Janeiro: Forense, 2019, pág 203) Daniel Marchionatti Barbosa
MOREIRA, JOÃO VITOR DA SILVA. A INVESTIGAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FRENTE O INQUÉRITO POLICIAL. 2013.
Indiciamento policial – Leonardo Marcondes Machado – Temas Avançados de Polícia Judiciária. Fl. 91.
CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.